Bilhete às pressas

*Por Thales Gazzola

O ano era 1918 e estávamos no mês do Natal. O baile estava lindo, algumas lágrimas insistiam em tornar o assoalho do navio escorregadio. Alguns choravam por companheiros perdidos em batalha, outros por amigos que se foram por conta das pestes africanas, alguns nunca mais veriam suas mulheres e outros, seus filhos.

O baile da marinha francesa era um desfile de tristeza e alegria, até agora, quem não chorou de tristeza chorou por uma imensa felicidade. Graças aos céus aquele armistício em Compiègne fora assinado, malditos alemães. Se soubéssemos que seria tão fácil não teríamos esperado as ordens do general, quem diria que apenas derrubar alguns navios fornecedores seria a solução. Nenhuma arma seria páreo à fome.

Isso não importa, estou bem. Acabei de ver papai e mamãe, o senhor Clerc quase me arrancou o tríceps, um grande ferreiro. Minha mãe me preparou minhas preferências e encheu tanto meu estômago que nunca me senti tão mau em um navio quanto agora.

Enquanto homens choram por suas esposas e mandam cartas para que sejam jogadas ao mar, escrevo esse breve bilhete para que você conheça brevemente minha história e um pouco de minha família, a qual desejei que sentássemos aos domingos para comer qualquer coisa e rir dos arruaceiros dos prédios do gueto. Nada que durasse mais que um minuto.

Marrie, nome comum, dona de um beijo sublime que arde e tranquiliza ao mesmo tempo, nada comparável. Antes tivesse te conhecido na guerra e não há questão de trinta minutos. Antes tivesse tempo de sentir saudades de minha pessoa. Apenas um beijo e mais nada, não te culpo, porém meia hora foi o suficiente para que você fizesse da minha alma a mais fraca que já conheci e tirasse dela qualquer esperança no amor.

Dizer que você é uma meretriz é desmerecimento demais, minha doce enfermeira, mas entregar seu beijo a um homem de terno no corredor da sala de máquinas fez com que eu te contasse apenas brevemente o que passei e não tivesse vontade nenhuma de compartilhar isso no sofá de nossa casa. Quem dera eu pudesse ter sentido seu beijo novamente, mas pra você creio que tal encanto seja digno de quem o vento escolher.

Amor, espero que encontre esse bilhete em meio ao mar revolto para que sinta minha ira. Não você Marrie, sim essa droga de sentimento.

– Bilhete às pressas, as festividades continuam.

 

* Thales é um leitor assíduo que aprendeu a gostar da magia das palavras com Maurício de Sousa e a Turma da Mônica. Porém, como a mente é hiperativa, escrever se tornou uma extensão de tudo o que os olhos absorviam e uma maneira de expôr os mais variados sentimentos. Além disso, as linhas escritas são uma forma de demonstrar como a mente filtra as cenas observadas nas janelas ao longo da vida. Seus artistas preferidos são Kubrick, Martin, Machado de Assis, Umberto Eco e Mario Quintana.

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