A Amiga Genial, Elena Ferrante
Como muitas coisas em minha vida, foi Denise quem me apresentou à tetralogia de Elena Ferrante, usando um argumento recorrente em nossas trocas de sugestões (Você precisa ler! A gente precisa odiar ~uma pessoa juntas).
Não li sinopse ou resenhas, sabia apenas que a autora usava um pseudônimo e que seus leitores (e críticos) pareciam não encontrar meio termo: ou amavam ou odiavam a obra. Avancei pelas páginas com dificuldade, me sentia incomodada, irritada; quis desistir, reclamei para Denise (que em algum momento deve ter se arrependido de indicar), pedi spoilers para uma amiga e, então, lá pela metade do segundo livro, aconteceu: o incômodo virou obsessão, devorei as últimas páginas, os últimos livros e as duas temporadas da série produzida pela HBO.
São tantas informações, personagens e sentimentos, que a digestão dos romances aconteceu lentamente e, agora, quis compartilhar aqui minhas reflexões. De novo, não li nada sobre o assunto e talvez eu descubra que entendi tudo errado. Talvez, como acontecia nas aulas de Literatura do colégio, um professor diga que absolutamente não era essa a ideia da autora ao escrever tal passagem (como você sabe?!). De toda forma, acredito que os livros são, muitas vezes, aquilo que fazemos deles. A ideia aqui não é comentar o enredo, mas apenas dividir a enxurrada de pensamentos suscitados pelas palavras de Ferrante.
Bom,
Por uma questão prática (rs), vou usar o nome do primeiro volume para me referir à tetralogia, mas os livros são: A Amiga Genial, História do Novo Sobrenome, História de Quem Foge e de Quem Fica e História da Menina Perdida.
Ambientado em Nápoles (Itália) e com início na década de 1950, o romance é escrito na voz de Lenu, que conta a história de sua amizade com Lila até chegar nos anos 2000.
As mulheres
Se um dia disserem que Elena Ferrante é, na verdade, um homem, ficarei chocadíssima e serei a primeira a gritar: MENTIRA! Para mim, a força do romance está em sua capacidade de retratar as mulheres com uma autenticidade que apenas uma de nós seria capaz de fazer. Arrisco dizer que, nem que fosse o mais exímio observador, um homem jamais conseguiria entender e narrar, em sua plenitude, os sonhos não realizados, os talentos desperdiçados, as frustações acumuladas e a abdicação da identidade – tudo em função do papel social, tudo em nome da maternidade, tudo pelo simples fato de ter nascido mulher.
“E, meu Deus, tinham dez, no máximo vinte anos a mais do que eu. No entanto pareciam ter perdido os atributos femininos aos quais nós, jovens, dávamos tanta importância e que púnhamos em evidência com as roupas, com a maquiagem. Tinham sido consumidas pelo corpo dos maridos, dos pais, dos irmãos, aos quais acabavam sempre se assemelhando, ou pelo cansaço ou pela chegada da velhice, pela doença.”
Ainda assim, entre uma passagem e outra, podemos perceber uma fagulha de resistência nas esposas, que ousam ter esperança pela próxima geração. Um sentimento que se manifesta de formas distintas na vida das protagonistas. Inseparáveis desde pequenas, Lila e Lenu viram seus caminhos bifurcarem-se quando a professora Oliviero sugeriu a seus pais que mantivessem as duas meninas na escola após o ensino fundamental – uma batalha perdida no caso de Cerullo, cuja mãe não teve forças (ou coragem?) para se opor à vontade do marido. Então, Lila passou a ajudar em casa e na sapataria do pai, enquanto Lenu seguiu a vida acadêmica.
Elena Lenu Greco – Não à toa, são as personagens femininas que, assim como Oliviero, dão força ao desenvolvimento de Lenu. É a mãe que, dividida entre seguir as regras de seu tempo e dar à filha a oportunidade que não teve, a desafia encoraja a estudar sozinha e recuperar as notas para passar de ano. É Galiani, professora do liceu, que lhe empresta livros e jornais, elogia seus textos e a incentiva a ter sempre as melhores notas. É sua sogra, Adele, que a ajuda a publicar seus primeiros livros e que a apresenta a pessoas influentes. É Mariarosa, sua cunhada, que apoia sua carreira e abre as portas da casa em um momento de necessidade.
Raffaella Lila Cerullo – Lila é como a flor que cresce entre as frestas do asfalto, sem qualquer auxílio e contrariando todas as expectativas. Aprendeu a ler e a escrever sozinha, era a melhor aluna em aritmética e, mesmo após ser obrigada a largar a escola, se recusou a viver conformada: escreveu um livro infantil, desenhou novos modelos de sapatos para o negócio da família, manipulou orquestrou a vida daqueles à sua volta para promover uma revolução nas dinâminas do bairro. Mas Lila apanha: do pai, do irmão, do marido, da vida. As feridas custam a sarar – algumas ficam para sempre abertas, infeccionadas. Entre altos e baixos, casamento e paixões, riqueza e pobreza, Lila segue levantando, reinventando, até o dia em que decide criar o seu próprio sumiço.
“A beleza que desde pequena Cerullo tinha na cabeça não encontrou saída, Greco, e foi parar toda no rosto, nos peitos, nas coxas, na bunda, lugares por onde passa depressa e é como se nunca tivesse existido”
A história em muito me lembra A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, romance de Martha Batalha ambientado no Rio de Janeiro. Nele também acompanhamos as idas e vindas daquelas que poderiam ser nossas avós, mães, tias, e que abriram o caminho para que nós chegássemos até aqui.
Os homens
“Bons ou maus, todos os homens acham que, a cada ação deles, você deve colocá-los num altar como um são Jorge matando o dragão.”
Talvez nas entrelinhas, e enquadrados sob o olhar feminino, Ferrante nos mostra que, ao oprimir as mulheres, os homens tornavam-se também prisioneiros. Precisavam se fazer caber no papel de provedor-viril-indestrutível. Competiam entre si – por mulheres, pelo melhor carro, pelo dinheiro, pela melhor família.
As mulheres existiam para, nessa ordem, serem conquistadas > lhes ajudarem a conseguir algo (prestígio, espaço, tempo) > e serem receptáculos – primeiro de seu esperma, depois de suas dores e frustrações.
“Essa distraída semeadura dos homens, entorpecidos pelo prazer; nos fecundam dominados pelo seu orgasmo; irrompem dentro de nós e se retraem nos deixando, selado na carne, seu fantasma como um objeto perdido.“
Especialmente no bairro, ou seja, na vida de Lila, os homens que ousavam ser diferentes – mais respeitosos, benevolentes – eram recebidos com grande empatia pelas mulheres, que sentiam como se estivessem existindo pela primeira vez na vida. A atitude normalmente não durava muito, pois eram pressionados e rejeitados pelos demais, que pareciam querer deixar claro: você é só mais um jogador nesse jogo, você não não muda as regras, você não prejudica a nossa imagem.
No núcleo de Lenu, os homens tinham um verniz civilizado, disfarçavam suas crenças e opiniões por trás de palavras difíceis, aprendidas no ensino superior. Seus egos igualmente frágeis revidavam não com socos, mas com frases duras. Pareciam temer e ao mesmo tempo invejar o intelecto das mulheres em suas vidas e, por isso, muitas vezes descartavam suas contribuições e reflexões sob o pretexto de que eram ingênuas ou insuficientes.
“Os homens eram fixados demais nele, no pau, tinham um enorme orgulho dele e estavam convencidos de que você devia admirá-lo ainda mais que eles.”
As mães
“Será possível que os pais não morram nunca, que todo filho os carregue dentro de si inevitavelmente?”
Ferrante pode trazer, para algumas de nós, reflexões sobre o que significa ser mãe, o que significa ser filha. No decorrer dos quatro livros, acompanhamos o relacionamento conturbado de Lenu com sua mãe – uma relação marcada por palavras não ditas.
De um lado, uma mãe ressentida ao ver mulheres estudadas influenciando a vida da filha, carregand0-a para cada vez mais longe, como se quisessem ocupar o seu lugar de genitora, como se dissessem: venha conosco, sabemos o que é melhor para você. Do outro lado, a filha que teme o andar arrastado da mãe, como se esse fosse o motivo para ela ter ficado sempre no mesmo lugar.
Em certo ponto, Lenu ouve da mãe: você acha que é melhor do que eu! – e, às vezes, nós achamos. O que esquecemos é que, se por ventura somos realmente melhores, devemos isso a elas. A quem nos deu o ventre, o peito, o coração, o sangue. E a grande ironia da vida é perceber que a parte delas que mora em nós – aquela que tanto temíamos – é, na verdade, o centro da nossa força.
A Amiga Genial
Somos todas Lilas. Somos todas Lenus. E o livro nos faz subir nessa gangorra, ora sentindo raiva de uma, ora nos decepcionando com a outra, mas de uma forma em que é sempre possível ter empatia por ambas, pois são mulheres, como nós, e carregam em si o mundo.
Se pararmos para pensar, todas nós temos e todas nós somos uma Amiga Genial. Alguém em quem nos espelhamos, nos inspiramos e, por vezes, até nos ressentimos com suas conquistas – não porque não acreditamos em seu merecimento, mas porque elas nos lembram das vezes em que nos faltou a oportunidade ou a motivação para também alcançar o que desejamos.
“Minha vida me levava a imaginar como teria sido a dela se por acaso lhe houvesse cabido aquilo que me coube, que uso ela teria feito de minha sorte.”
A história ressoa especialmente com nós, que encontramos nas palavras um recurso para dar sentido à vida e vazão aos nossos sentimentos. A insegurança de Lenu, buscando validação sempre no outro – tanto para si quanto para seus textos. E o sentimento de, ao relê-los anos depois, ver que foram esvaziados de sentido, pois o mundo não é mais o mesmo, assim como nossas prioridades.
A adaptação para a TV
A série é filmada em italiano (bellissima!) e tem um elenco excelente que, em quase todos os casos, se encaixa com perfeição aos personagens, suas personalidades, forças e defeitos. O primeiro episódio teve sua estreia em novembro de 2018 e cada temporada é dedicada a um volume da tetralogia – sendo a terceira temporada esperada para 2021.
O roteiro é bem escrito e narra os principais acontecimentos da obra, reproduzindo os diálogos à risca e nos apresentando a violência e a pobreza de Nápoles descrita com veemencia por Ferrante. A produção é primorosa e consegue traduzir parágrafos inteiros em cenas silenciosas, cheias de olhares e significados.
Por fim,
A Amiga Genial é uma história amarga que expõe diante de nós o cemitério onde as expectativas vão morrer. Embora se passe na Itália, os problemas são estranhamente familiares. Suponho que a pobreza seja o grande denominador comum, o encurtador de distâncias que nos mostra seus desdobramentos e o rastro de violência e tristeza que deixa para trás.
Ao mesmo tempo em que me causou um desconforto enorme – um desconforto que ainda agora eu tento categorizar – também me fez querer ser uma mulher melhor. Uma mulher que explora suas capacidades e oportunidades ao máximo. Uma mulher que quer conhecer, entender e respeitar a história das mulheres que estão ao meu lado e das que vieram antes de mim, consciente de que sou a soma de todas elas.
Acredito que esse é o tipo de obra que vai revelar novas camadas a cada leitura, especialmente se as fizermos em épocas diferentes da vida, com as lentes de maturidade adquiridas com o passar dos (d)anos.