A manhã estava calma, não havia sinal da tormenta que fora a noite anterior.
Ele gostava de respirar a grande cidade àquela hora, os raios de sol começavam a se confrontar com a grande muralha, chamando o mundo para um novo dia.
Como todas as manhãs, seguia para os portões levando consigo a imensa cesta com o desjejum dos guardas. Usava a tradicional veste da Ordem, calça de algodão cru e o sobretudo do mesmo tecido abotoado até o cós da calça, formando uma capa esvoaçante; achava um tanto conservador, mas o corte facilitava os movimentos. Caminhava silenciosamente pela avenida principal, andando pelos telhados, sentindo-se um garoto fazendo uma travessura.
A neve parecia feita de algodão, a cidade estava linda, como um templo sagrado e intocado. Sagrado. E agora talvez intocado, já havia séculos que nada adentrava a muralha, nem boas nem más noticias, um refugio de paz, em meio a inúmeras guerras e batalhas.
Lembrou-se da tempestade, ela fora prevista há alguns meses, na ultima conferencia. Paulo não previra a tempestade literalmente, mas depois daquela noite se convencera. “Uma mudança… Mudança que balançaria os alicerces daquela sociedade”. E era verdade, uma tempestade como aquela, talvez acabasse com o plantio, e traria a fome por muitos meses. Ninguém podia saber o que a tempestade teria causado nas terras daquele povo.
Afastou os maus pensamentos de sua mente, e contemplou o silencio antes de chegar aos portões. Viu-se pequeno, minúsculo… e a quase trinta metros acima dele, seu fiel companheiro chegava de seu passeio noturno.
– Angelus! Não faça barulho garoto… Venha cá! Tenho um presente para você!
O enorme animal desceu suavemente rente a muralha de carvalho, e pousou ao lado de Paulo.
– Olha, aqui está. – tirou do bolso um embrulho quadrado, abriu e estendeu a mão, mostrando uma grande barra de cor escura e aparência não muito apetitosa. – Mais uma experiência de Jorge, qualquer dia ele vai nos matar…
O hipogrifo com penas negras e douradas, chamado Angelus, examinou a barra, a ele parecia um tijolo queimado.
– Coma! Não pode ser tão ruim – ele não acreditava nas próprias palavras – Ele disse que é feito de cacau, mas parece muito duro não sei se conseguiria morder. Vamos lá amigão, tente.
Angelus cheirou, parecia bom. Atacou o tijolo com o bico, e o doce parecia derreter… muito, muito bom… Olhou de volta para o amigo humano, e atacou a barra novamente.
– Hunf… É bom assim? Então deixe um pouco, também quero experimentar. Você está cansado, pode ir dormir, sua almofada esta limpinha no meu quarto. Tia Júlia teve outro ataque de limpeza, virou nosso quarto do avesso… Vai lá… Pode ir dormir.
Angelus preparou o voo, e parou, encarou Paulo.
– O que foi? Tem novidades? – O hipogrifo fez uma longa reverência, e Paulo retribuiu – Aceito sua companhia, mas vai ter que esperar os guardas comerem. – Angelus ergueu o bico, num gesto orgulhoso.
Vasculhou os bolsos até encontrar uma grande chave cor de cobre.
Suspirou profundamente, sabia que a abertura dos portões era o despertador daquela gente. Colocou a chave na fechadura enferrujada em forma de infinito, ou como ele mesmo dizia quando era criança, em forma de oito. E… “Primeiro em baixo… duas voltas para direita… em cima… três para esquerda e uma para direita de novo… apertar no meio até ouvir um ‘click’…”. Paulo tinha medo de um dia esquecer como abrir aquilo. Logo após o “click”, ouviu-se a engrenagem dos portões percorrer toda extensão da muralha, num ruído gracioso.
Já tinha visto muitas coisas, e cenas inusitadas ao abrir os portões, mas com aquilo ele não sabia lidar.
Depois de alguns segundos observando ainda não acreditava no que via. Conseguiu recuperar a fala e sussurrou: “Angelus… traga ajuda…”.
* Este é o primeiro capítulo de um projeto que ficou na gaveta por muito (muito) tempo. Ele vai ser retomado a qualquer momento, essa é uma amostra que queria compartilhar com vocês.