Menino com fome
por Carlos Sartori
É frequente a dúvida que me surge ao ouvir as pessoas falarem sobre fome. Fome é uma sensação causada pela ausência de alimento ao corpo humano. Alguns defendem o direito de procriar justamente por afirmarem trabalhar e terem o suficiente para dar o de comer aos filhos; e é exatamente aí que se (con)fundem dois conceitos distintos: fome e miséria.
Certa vez passava pela rua mais movimentada de uma pequena cidade do interior do estado de São Paulo. Era uma daquelas cidades que o vento custa a cruzar, justamente porque a vida passa mais devagar. Mas voltemos ao que queria dizer. O menino. Um menino naquela rua olhava, de mão dadas a sua mãe, uma vitrine de uma daquelas lojas que vendem de tudo. “Pode me dar um protetor solar?” e “me veja também um quilo de acém moído”. Mas a vitrine exibia uma linda bicicleta branca com partes vermelhas. O menino se alimentava de um salgado oleoso e fitava apaixonadamente a bicicleta.
Muito mais do que um desejo, o menino tinha fome. Por isso ele jogou, ali mesmo na calçada, o salgado gorduroso, oleoso, desejoso e pavoroso. A fome agora era outra. Tinha fome de bicicleta.
Nunca uma cena me rendeu tanto tempo dedicado à reflexão e observação. Um menino. Um menino! Ele tinha mais do que fome. Tinha urgência. Quantas vitrines teria este menino olhado e sentido esta sensação de vazio no âmago? Ou seria no estômago? Quem seria o pai daquele menino? Provavelmente alguém que se sentiu no direito (ou irresponsabilidade) de procriar por trabalhar e ter o suficiente para dar o de comer aos filhos.
O mundo está errado. Consumir se tornou necessidade urgente porque as mídias e as vitrines de lojas de pequenas cidades de ruas movimentadas no interior de São Paulo insistem em dizer que mercadoria é alimento e que a alma também passa fome. Estranhamente são poucas as pessoas que passam fome de livros, de conhecimento, de prazeres que não se colocam em vitrines ou nas TVs.
Voltemos ao menino que foi a origem de tudo isto. Ele me fez pensar se a justificativa do pai de colocar um filho no mundo pode ser a autossuficiência de prover alimento. Pode-se ainda avaliar se existe tal permissão. No final, quem paga a conta? Este menino era um total miserável que não tinha nem a atenção da mãe que lhe segurava a mão direita. Ele nem tinha educação. Todos os que olhavam, incluindo a mim, falhamos. Falhamos porque, além e no final de tudo, ninguém lhe disse que ele não podia jogar o salgado e sujar o chão. Será que fome também é falta de educação?
Carlos Sartori nasceu em Tambaú, SP, próximo a Ribeirão Preto. A paixão pelas letras começou desde muito cedo, ainda na escola, ao escrever redações para todos os colegas de classe. Já teve textos publicados em inglês no Paquistão, adora leitura e possui paixão especial por Clarice Lispector e Machado de Assis. Leciona português e inglês em escolas e empresas públicas e particulares.
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