Olhou para as suas mãos: o líquido vermelho escorrendo, cheio de raiva e culpa. Ela perdera o controle. Anos de paciência, resiliência, obediência… tantos ências jogados no lixo. Suas mãos tremiam. Ela não sabia se de medo ou felicidade.
Chovia caixas d’água quando ela acordou naquela segunda-feira. Vestiu a calça social (malditas calças sociais!) com dificuldade e lembrou-se mais uma vez de fazer a matrícula na academia. Calçou seu sapato vinho ralado, sabendo que estaria encharcado quando chegasse no trabalho. Se ao menos pudesse trabalhar de botas…
Ignorando o pneuzinho na cintura, e satisfazendo o seu mais novo vício, resolveu passar na padaria e comprar dois donnuts: um de chocolate e um de frutas vermelhas. Sempre comia o de chocolate primeiro, deixando o melhor pro final. Era aquele gostinho ácido e remanescente da geléia que a fazia sobreviver até a hora do almoço.
Patético. Ela sabia. Mas o seu estado de desânimo permanente já durava algumas semanas. Tá bom, alguns meses. Era uma depressão-pós-graduação. Negócio sério. Devia estar até no Google. Ela odiava o seu trabalho e a sua rotina decrépita.
Entrou no prédio deixando um rastro de chuva e mau humor. Em seu cubículo já havia uma pilha de planilhas e números esperando para serem contabilizados. Colocou a embalagem com os donnuts em cima da mesa e, antes mesmo que pudesse encher o ridículo squeeze de água, teve a visão de Ademar, o chefe, enfurecido como um touro, caminhando em sua direção, bradando coisas ininteligíveis e sacudindo papéis no ar.
Começou a reclamar alguma coisa sobre gráficos e tabelas. Ela não ouvia. O suor escorria pela testa dele e ela pode ver quando uma das gotinhas caiu no colarinho engordurado da camisa. A barriga sobrava para fora da calça, como uma piada, e os sapatos esfolados eram um espelho do seu desleixe e preguiça.
– Maria Cristina! Eu não tenho o dia todo! O que você tem a me dizer sobre isso?
Tudo aconteceu muito rápido. Em um segundo ela se viu abrindo a caixa de donnuts e batendo os bolinhos com violência na cara de Ademar. Cabeças erguiam-se por sobre as baias em um sinal de curiosidade e medo coletivo. Maria Cristina sentiu seu corpo sendo puxado para trás enquanto ainda debatia-se para alcançar o chefe.
Olhou para as suas mãos: o líquido vermelho escorrendo, cheio de raiva e culpa. Ela perdera o controle. Anos de paciência, resiliência, obediência… tantos ências jogados no lixo. Suas mãos tremiam. Ela não sabia se de medo ou felicidade.
De felicidade. Definitivamente.