Maria Ângela abriu os olhos sem ter certeza de onde estava. Os óculos-fundo-de-garrafa repousavam na mesinha ao lado da cama, mas percebeu, surpresa, que não precisava deles – sua vista estava nítida. Sem as costumeiras dores, colocou os pés no chão e levantou-se com uma agilidade que não tinha há anos. Caminhou pelo quarto, que não lhe era estranho, e abriu a porta-balcão, revelando não só um dia ensolarado, mas o seu destino: a chácara.
Da varanda, que circundava a pequena e confortável casa de madeira, ela observou a água cristalina da piscina, o rio Tietê que corria despreocupado logo abaixo, os pássaros, as árvores e, por um segundo, pensou ter escutado cachorros latindo à distância.
Recordava com carinho todos os momentos vividos ali: os natais, os aniversários, os filhos reunidos, as férias das crianças. Crianças… Estava perdida em suas lembranças quando ouviu as risadas – um grupo de meninos e meninas de diferentes idades formavam uma fila em volta da pequena mesa de cimento à sua frente. Um a um, subiam com os pés descalços, agarravam a folha pendente do coqueiro e, saltando, se deixavam balançar, exatamente como seus netos faziam há… quanto tempo atrás?
Enquanto tentava lembrar em que ano estava, o que tinha acontecido e como fora parar ali, viu uma mulher se aproximar. Usava um vestido longo e branco de verão, um xale azul sobre os ombros e carregava um rosário na mão direita. Caminhava em sua direção sem tirar os olhos dos pequenos. Estavam bem próximas quando a mão de uma das meninas escorregou da folha e ela caiu, rolando pela grama.
– Minha Nossa Senhora! – disse preocupada com a pequena.
– Sim, estou aqui. – respondeu a mulher com um sorriso tranquilo.
A observou tirar o xale e secar as grossas lágrimas da garota, que escorriam pelo rosto em direção ao furo no queixo, passando pela bochecha esfolada na queda. Com um beijo sobre o machucado, a enviou de volta para brincar com os demais.
– Olá, Maria Ângela! Como você está?
– Confusa! – ela disse com as mãos apoiadas na cintura, o pescoço projetado para frente de forma inquisitiva. Em sua época de inspetora escolar, foi com essa pose que ganhara o apelido de mamãe ganso. Ela gostava de ordem, nada de baderna! E estar ali sem saber das coisas não era uma sensação a que estava acostumada.
– Venha, temos muito o que conversar. Quer tomar um café ou prefere uma batidinha?
– Aaah, uma batidinha é bom! Eu gosto.
– Com açúcar?
– Ah sim, de amargo já basta a vida.
A mulher riu baixinho e, achando que a tinha ofendido, Maria Ângela apressou-se em dizer:
– Perdão, Nossa Senhora.
– Está tudo bem, Ângela. E pode me chamar de Maria.
Sentaram-se em duas espreguiçadeiras à beira da piscina, de onde podiam conversar e vigiar as estripulias. Na mesinha entre elas, já estavam duas taças cheias de uma bebida refrescante.
– Então, me diga: o que você gostaria de saber?
– O que estou fazendo aqui? Onde está minha família? Quem são aquelas crianças? Como…
– Calma, calma. Uma coisa de cada vez. – Maria disse, colocando a mão sobre seu joelho. Ao toque, sentiu uma corrente de paz pelo corpo e apoiou-se no encosto da cadeira para bebericar o drink.
– Ângela, você morreu, este é o seu Céu.
Pensou que uma pessoa normal ficaria em estado de choque com a informação, especialmente porque a última coisa que ela lembrava era de estar deitada na cama, assistindo CSI: NY. Mas, fosse pela tranquilidade que ainda sentia ou por algum ingrediente da sua bebida, não ficou alarmada e esperou Maria continuar.
– Normalmente, é Jesus quem dá as boas-vindas, mas eu disse à Ele que gostaria de te receber. Pois bem, foi tudo muito rápido, decorrente de um vírus trágico que a Humanidade ainda está aprendendo a lidar. Com o tempo, você vai lembrar de tudo, se assim quiser.
– Doeu?
– Não, você foi em paz. E, embora sua família não pudesse estar ao seu lado, todos estavam com você, em pensamento.
Observou enquanto Maria (a mãe de Deus) continuava a passar as contas do rosário. Notando seu olhar, ela explicou:
– Eu estou sempre em oração pelos meus filhos e filhas, mesmo enquanto conversamos.
Sorriu acalentada com a resposta e tornou a bebericar sua batida. Como se soubesse (e sabia) o que passava em sua cabeça, Maria retomou as explicações:
– Aqueles são seus bisnetos e bisnetas. Eles não nasceram ainda, mas achei que você gostaria de conhecê-los… eles não viam a hora de te encontrar!
Olhou com um carinho enorme para as crianças, que agora acenavam para ela enquanto esperavam a vez de balançar.
– E por que aqui? Por que essa chácara?
– A chácara foi uma escolha sua… imagino que você tenha sido muito feliz aqui.
– E estou presa nesse lugar?
– Não, não… ninguém nunca está preso. Nem em vida, nem após ela. Sempre temos escolhas. Você pode passear, visitar outras memórias, lugares, pessoas.
– Pessoas?
– Sim! Aqueles que chegaram antes de você. Muitos estão ansiosos para o encontro. Seu pai já preparou um banquete e está à sua espera com sua mãe e sua irmã.
– Mas… e minha família? Eles vão ficar bem?
– Sim. Sua partida deixou um buraco no coração de cada um, é verdade… Agora, só podemos esperar que eles o encham com boas lembranças. Você com certeza deixou várias.
– E eu não posso fazer nada para ajudar?
– Você pode orar – disse, oferecendo o rosário. Orar para que eles não se deixem aprisionar pelo luto e para que tenham uma vida plena, como toda mãe deseja aos filhos.
Maria Ângela aceitou o rosário e sentiu as mãos percorrendo as contas automaticamente enquanto seu coração orava, assim como Nossa Senhora estava fazendo há pouco.
– Agora vamos, ainda tenho muito para te mostrar.
Maria, Mãe de Deus, levantou-se e caminhou rumo ao portão. Parou para esperar Maria Ângela, que já não estava confusa, não tinha medo. Sentia-se como a criança que havia caído e levantado: pronta para a próxima aventura.
Maria Ângela Diz
22/09/1942 – 25/10/2020