Poderia escrever sobre como, desde tenra idade, fora apaixonada pela língua portuguesa. Sobre como brincara com as palavras na rua, na escola e no recôndito de seu quarto, sempre querendo descobrir mais sobre aquela que a fazia entender o mundo e também a entendia.
Poderia escrever sobre como escolhera fazer dessa relação o seu ganha-pão. Como decidiu sair de casa, mudar-se para uma nova cidade levando, dobrados em um canto da mala, o medo, a expectativa e a amizade com a língua. Queria ser jornalista. Queria viver do namoro entre seus próprios pensamentos e aquilo que lhes dava forma.
Também poderia escrever sobre os vícios adquiridos com essa relação. Como o costume, quiçá condenável, de editar a fala daqueles com quem conversava, ajeitando os atributos da língua como se ajeitasse um ramalhete de flores, buscando a harmonia perfeita.
E poderia falar sobre o injusto hábito de avaliar seus pretendentes pela intimidade que apresentam com a bela e pomposa língua. Não exigia nada extraordinário dos rapazes, mas não poderia permitir que eles a desrespeitassem – ela, a língua.
Mas decidiu escrever sobre como aquela relação, cultivada com cuidado até ali, estava falling apart. Não conseguia mais se expressar, faltavam-lhe palavras. Faltavam-lhe palavras em sua própria língua! Isso a assustava.
Talvez fosse sua culpa. Talvez dedicasse pouco tempo àquela que fora sempre sua companhia. Os encontros, antes diários e nas grandes obras, agora se limitavam às leituras obrigatórias da faculdade e, frequentemente, ao dicionário. Sentia vergonha de rever a velha amiga por meio dele. Havia muito não precisava de um intermediador que lhe fizesse lembrar significados esquecidos.
Esse era o seu pedido de desculpas. A sua declaração de saudade. Queria voltar às antigas leituras, às brincadeiras com as palavras. Queria retomar a caminhada que a faria descobrir o que Clarice e Carroll e Guimarães descobriram: a beleza da língua desnuda, em sua intimidade.