Maria Lúcia não sabia ficar quieta. Aprendera a falar aos 11 meses de idade e desde então nunca mais parou. Há quem pense que ser comunicativa é uma vantagem na vida, mas sua necessidade de falar sempre lhe causara problemas. Na escolinha, os pais eram chamados com frequência, pois Maria Lúcia tirava a concentração dos coleguinhas. Na adolescência, afugentava os garotos com o mar de palavras que lhe saía da boca. Na vida adulta era repreendida pelos chefes, que reclamavam da incessante falação. Mas levava uma vida feliz, encontrara um homem surdo que a amava, tinha uma boa família e um emprego.
Certo dia ao acordar, Maria Lúcia encontrou à cabeceira um envelope com uma carta e algo semelhante a um pager.
CARTA
Prezada Maria Lúcida,
Informamos que você está se aproximando do limite de palavras por ser humano (PPSH). No momento, você possui 821 vocábulos para utilização. Recomendamos sabedoria, papel e caneta para que você possa chegar ao fim da vida sem arrependimentos.
No envelope você encontrará um contador, que será de grande ajuda para manter o controle das palavras restantes.
Agradecemos a compreensão e lamentamos não estar à disposição para esclarecer suas dúvidas.
Atenciosamente,
A chefia.
ANEXO I
O cálculo de palavras por ser humano (PPSH) é baseado em informações apuradas pelo nosso departamento, conforme segue:
MULHERES
A x B x C = PPSH, onde A tem o valor médio de 20.000 palavras por dia, B corresponde aos dias do ano e C é a expectativa de vida de acordo com o estado do ser humano em questão – 74 anos para um(a) paulistano (a). Para considerar o ano bissexto, a equação foi dividida em duas partes:
(20.000 x 365 x 56) + (20.000 x 366 x 18) = 408.800.000 + 131.760.000 = 540.560.000
– Que absurdo! – O contador apitou: 819
Com os olhos arregalados, Maria Lúcia entendeu que a situação exigia um pouco mais de seriedade e cabeça fria. E se fosse verdade? 819 palavras durariam menos de uma hora e ela, no auge de seus 32 anos, ficaria muda para sempre.
Absorta em seus pensamentos, perdeu o horário para o trabalho – talvez fosse melhor assim, tinha que bolar uma estratégia de sobrevivência. Pensou em todas as pessoas que mereciam ouvir umas boas verdades, mas que não valiam uma sílaba. E pensou naquelas que mereciam uma canção de amor, mas teriam que se contentar com uma carta. E talvez uma melodia ao fundo.
Os primeiros dias foram terríveis: Maria Lúcia tremia de abstinência, o que piorava ainda mais sua letra no bloquinho de anotação. Mas como o tempo cura quase tudo, aos poucos ela se acostumou e aprendeu a ser feliz, triste, brava, preocupada… tudo em silêncio
Não é como se não conversasse com as pessoas. Tinha longas conversas com a sua mãe – longas principalmente pelo tempo que levava para escrever suas falas em um papel. Algumas situações escapavam do seu controle, como naquela manhã em que perdeu duas palavras ao gritar AI, DROGA! ao bater o dedinho na quina da cama.
EU ME DEMITO. Foram palavras necessárias pro paspalho do Edvaldo, seu chefe, aprender que tudo tem limite.
AAAAAHHHH. Foi um vocábulo prolongado dito com prazer, se é que você me entende.
Você vai ser pai. Poderia ter dito estou grávida – salvaria duas palavras, mas pra que economizar num momento desses?
Eu te amo. Disse quatro vezes na vida, que lhe custaram 12 vocábulos, usados com muito gosto com o marido, o pai, a mãe e o filho.
Vai arrumar o seu quarto AGORA. Mãe nenhuma é de ferro e nem todas as broncas podem ser dadas escritas em uma folha sulfite.
Adeus. Disse uma vez para o pai e outra para a mãe. As duas palavras mais doloridas e as que foram mais difíceis de dizer também, mas não podemos deixar os pais irem para o Céu sem um adeus, não é mesmo?
Ao longo de sua vida, colecionou 4875 blocos de rascunho e 5 calos nas mãos. Além do recorde de palavras já ditas por um ser humano, deve ter superado o de palavras já escritas também.
Nesse tempo aprendeu que o amor, a raiva, a indignação e a felicidade podem ser expressados de infinitas maneiras – um abraço, uma música, uma virada de costas, uma batida de pé, uma carta, um sorriso – e que todas elas exigem tanta responsabilidade quanto as palavras. Descobriu também que algumas coisas realmente não precisam ou não devem ser ditas.
Na manhã do seu septuagésimo quinto aniversário, acordou sabendo que aquele era o dia – sua saúde não era mais a mesma. Olhou para o contador que há 5 meses mostrava o mesmo número: 10. Todas as noites rezava por uma morte tranquila, perto daqueles que ela amava, para que pudesse dizer a frase tão cuidadosamente pensada. Reuniu o marido, o filho, a nora e os netos e disse com carinho:
Fui muito feliz com vocês,
5
vou sentir saudades,
2
se cuidem.
0
Queria ter só mais uma palavra. Tentou a sorte:
Adeus.
O contador deu um apito alto e começou a sair fumaça. Maria Lúcia não teve tempo pra questionar, o coração não aguentou a dúvida e os olhos se fecharam pra sempre.