A menina que fazia nevar, Grace McCleen

Milagres não têm que ser grandes e podem acontecer nos lugares mais improváveis. Às vezes são tão pequenos que as pessoas nem percebem. Às vezes os milagres são tímidos. Ficam puxando as suas mangas, esperando você percebê-los, e depois somem. Muitas coisas começam bem pequenas. É um jeito bom de começar porque ninguém nota. Você é só uma coisinha perambulando, cuidando da própria vida. Aí você cresce.

Foi com o trecho acima, da contra-capa do livro, somados ao nome e a capa super fofa que A menina que fazia nevar me conquistou inicialmente. Foi amor a primeira vista, e eu sei muito bem que não devemos julgar um livro pela capa (já me arrependi por isso), mas nesse caso o amor só fez aumentar depois que comecei a leitura.

A menina que fazia nevar é narrado por Judith, uma criança de 10 anos que é ameaçada de ter a cabeça enfiada na privada pelo colega de classe Neil. Judith é uma garota que perdeu a mãe logo depois do parto e vive com o pai, as únicas pessoas com quem convive são os fiéis da igreja que frequenta e os alunos da escola, onde é constantemente vítima de bullying e não tem nenhum amigo. Apesar de tudo isso, sua história não é apresentada como triste no início, a menina é cheia de esperança e não tem nenhuma raiva no coração.

O envolvimento na igreja é o motivo de todas as gozações que sofre. Ela e seu pai são muito religiosos, vivem falando sobre o fim do mundo, vão de porta em porta fazendo pregação, não comemoram o natal nem os aniversários, não assistem TV, não podem realizar transfusões de sangue (e foi por isso que a mãe morreu) e fazem estudo bíblico todos os dias antes de dormir. Além disso, o pai ainda enfrenta uma greve na fábrica em que trabalha e não adere por causa da religião, causando ainda mais estresse com os outros trabalhadores.

Talvez pela falta de amigos, Judith cria em seu quarto uma maquete da Terra Gloriosa (o paraíso), cria bonecos e casas de sucata, um lago de espelho, nuvens, árvores, lojas, pássaros. Tudo! Com todo o material imaginável, palitos, papeis, tampinhas, arames, miçangas, tecidos, potes, caixas, argila… Enfim, um monte de coisa mesmo!

Digo a mim mesma que há palácios nas nuvens, montanhas nas piscinas naturais, estradas na poeira sob meus pés e cidades no lado de baixo das folhas; há um rosto na lua e uma galáxia no meu olho e um redemoinho no alto da minha cabeça.
E então sei que sou imensa e sou pequena, ficarei para sempre e irei em um minuto.

O livro começa depois da ameaça de ter sua cabeça enfiada na privada. Judith ouve um sermão na igreja sobre milagres e pensa que, talvez, Deus possa fazer alguma coisa para que ela não precise ir à escola na semana seguinte. Ela cogita algumas possibilidades como um meteoro ou uma bomba explodirem o local, mas acha perigoso demais, então acaba chegando a conclusão da neve. Quando neva, as escolas fecham e ela poderia ficar em casa. Com essa ideia, Judith começa a encher sua cidade em miniatura de neve com espuma de barbear, panos, algodão, chacoalha uma coberta em cima, deixando cair farelinhos do tecido e aquilo vai aumentando dentro dela e ela começa a ouvir uma voz dizendo para deixar mais e mais frio. E mais neve. E mais neve. E então ela acaba adormecendo e, ao acordar no dia seguinte, a cidade está cheia de neve!

Então, aí o título perfeito (e não original, mas perfeito ♥): A menina que fazia nevar. Porque ela realmente fez nevar, ou ao menos acreditou nisso. Judith pensa que é capaz de fazer milagres, mas ninguém mais acredita nela. Todos acham que é uma brincadeira ou imaginação da menina. As gozações na escola aumentam, o pai briga com ela por falar tanto em milagres e as coisas começam a ficar ainda piores.

Não quero mais acordar nesse mundo.

Judith, para provar que a neve não foi coincidência, pede por outros milagres. A voz continua em sua mente, cada vez mais frequente e ela tem certeza que está conversando com Deus. Acontece que as coisas começam a dar errado, os “milagres” trazem consequências ruins que ela não esperava e seu “poder” foge de controle.

Talvez seja porque os milagres funcionem melhor com as coisas simples, quanto mais simples melhor. Talvez seja porque eles comecem com miudezas. Quanto mais miúdas, maior o milagre.

Eu gostei tanto da história que se deixar vou contá-la inteira. Mas spoilers são chatos, então melhor encerrar os detalhes por aqui. O que estou tentando explicar é que Judith se vê numa situação completamente diferente do começo e não pode voltar atrás nas coisas que fez.

É uma história sobre milagres e sobre fé (não necessariamente a fé religiosa, mas a fé da esperança, de que tudo pode acontecer). Acho que depende muito da interpretação, mas pra mim a religião é só um plano de fundo, a questão principal não é essa, mas sim a crença de que tudo pode acontecer e de que coisas pequenas podem se tornar imensas e fugir do nosso controle. Que coisas que parecem boas nem sempre o são até o fim e que a vida não é fácil, nem justa. Pra ninguém.

Vivo dizendo para mim mesma que as coisas pequenas são grandes e as coisas grandes são pequenas.

Ainda assim, a esperança continua e, da mesma forma que coisas que parecem boas não o são, coisas ruins também podem no fim ser boas. Que pessoas que parecem horríveis podem ter seus motivos para se tornarem o que são. Que uma história inicialmente toda fofa pode terminar um drama super emocionante.

A autora, Grace McCleen, trás uma narração incrivelmente encantadora. Judith é fantástica! Tudo bem que você não consegue ter certeza no final o que foi tudo aquilo, o que era real ou não, o que era Deus ou o Diabo ou apenas uma voz em uma cabeça maluca. Mas nada disso torna a história menos interessante, pelo contrário!

Você pode passar a vida ponderando e, mesmo assim, não saber o que pensar.

A escrita é maravilhosa, com vários trechos lindos (vide o tanto de quotes na resenha, só não tem mais porque não dá pra por o livro todo. haha). Além disso, qual é a graça de uma história toda mastigada? Não! Você pode tirar suas próprias conclusões, imaginar o que quiser. Essa é a graça.

Acho que não restou nenhuma dúvida do quanto gostei, não é? A não ser que você goste de finais totalmente finalizados e histórias completamente explicadas, esse livro é ótimo! Mais que recomendo!

Pra encerrar, só mais um trechinho e o book trailer pra vocês, que é bem interessante também:

Aí eu também caí, mas não sabia onde, porque já não havia lugar, e não sabia por quanto tempo, porque já não havia tempo. O escuro encheu meus olhos porque já não havia luz e não fazia sentido levantar de novo porque o que havia sido feito nunca mais poderia ser consertado.