Sustenido

por Felipe Trevisan*

Sabe, não me agrada a Escala de Lá. Nunca me agradou. Prefiro arriscar-me nas inconstâncias da Escala de Aqui, nas intemperanças que soam aos acordes desafinados que destoam sob meus dedos suados. Prefiro compor aqui, e em Aqui. A oitava nota que eu mesmo tratei de inventar, e eu mesmo tratei de construir com o som das batidas de seu coração. A música dos abraços acalentadores e – paradoxalmente – vorazes de átrios e ventrículos, e os meios-tons extraídos de seu olhar. Os meios-tombos que me causa tua boca, que me deixa meio-louco, meio-torpe, meio-morto. Acompanhados sempre dos bemóis sussurrados ao pé de meu ouvido, na clave de Teu Corpo (invenção minha também, admito) onde o Ritornelo sou eu lhe implorando para ficar.

Nesta minha clave – que é tão sua, muito mais do que minha – refazem-se as mínimas, que há muito não eram usadas. Mas há muito não se ama como eu amo, então acho que posso me conceder esta pequena liberdade. E estas notas tão pequeninas duram, obrigatoriamente, para sempre. Ainda que não durem de fato, continuam soando, e ecoando assim, mansinhas, dentro de nossas cabeças.

E a pobre nota de Aqui faz-se muda sem a clave de Teu Corpo em mim. Pobrezinha, perdida no sustenido estreito e irreal entre a compaixão e si própria. Pisoteada pelas fusas e colcheias atrozes das longínquas terras de Sol e Fá.

Portanto, se insistir em ir, leve Aqui consigo. Ela ainda assim ficará perdida fora da partitura que eram os nossos corpos juntos, da composição outrora infinita que era o nosso amor, das cinco linhas que enlaçavam nossos beijos, que me amarravam em você. Mas eu continuarei na Escala de Lá, lhe esperando voltar. Aqui.

Leve Aqui e escute seu sussurro, seu choro. A melodia de seu pranto, ritmada e copiosa. Talvez ela consiga te trazer de volta pra mim, façanha que nem meus lábios quentes, nem meus dedos descompassados e demasiado ignóbeis sobre o piano conseguiram. Talvez ela toque seu coração, talvez ela tome conta dele. Talvez nem chore. Talvez lhe ofereça os ombros para que consuma os seus prantos, talvez… Talvez…

Talvez não haja Ritornelo. Talvez a platéia não peça bis. Sequer aplauda. Talvez este seja o prelúdio de meu fim. Talvez Aqui não lhe resgate de Lá.

Mas talvez ela te suba meio-tom. Talvez você volte para Dó, talvez você volte por dó. Talvez você retorne para Mi(m), e então eu poderei tocar esta canção, várias e várias vezes. Talvez, assim como eu aprendi desde cedo a tocar este velho piano, você aprenda a me amar.

 

Felipe Trevisan é um sonhador. Quer ser um milhão de coisas ao mesmo tempo e ter braço para abraçar o mundo todo de uma só vez. E é por isso que escreve, desde que se lembra da vida, até antes mesmo de saber escrever (quando ditava historinhas para que sua mãe as escrevesse). Tem uma parte da alma rabiscada em letras vermelhas. É estudante de Letras na Universidade Estadual de Londrina e futuro professor. Ou é o que acha, afinal, quem é que sabe do futuro?

Mais do Felipe no Insanidade Paradoxal.