Saborosa leitura

Seis e meia.

Ele veio outra vez. Acabou de passar pelo balcão onde estou atrás de uma pilha de livros. Sentou-se e está abrindo o notebook na mesa costumeira, na outra ponta está um grupo de meninas que terminou há muito tempo o trabalho de biologia. Duas delas observam e comentam sobre a aparência do recém-chegado, discutem alguns instantes sobre coisas excitantes que ele poderia proporcionar.

Elas não têm a imaginação muito desenvolvida.
Guardam os cadernos, entregam os livros que pegaram, depois que eu confiro e valido seus cartões elas saem tagarelando.
Ele chegou tarde dessa vez, outros grupos começam a se organizar e também deixam a biblioteca.

Sete e quinze.

Tranco as portas com alguém ainda aqui. Hoje não avisei que ele precisava ir, continuou concentrado mesmo quando começo a apagar as luzes.
Seus dedos compridos parecem compor uma sinfonia no teclado do computador.
Me aproximo de sua mesa com calma. Enfim chegou a hora.

– Olá!

– Oi… – ele me olha por dois segundos com os olhos desfocados, como se eu fosse fruto de sua imaginação – Preciso ir? Já está fechando?

– Hoje não, ainda tenho algumas coisas para fazer. Pode ficar mais um pouco.

Imediatamente ele volta sua atenção para a tela do notebook. Como se eu não o tivesse interrompido, como se ainda não estive ali esperando por mais.

– Você é escritor?

– Uhun… – Ele responde automaticamente sem desviar sua atenção nem por um milésimo de segundo.

– Escreve sobre o quê?

– Ficção, fantasia, tento transformar meus sonhos e pesadelos em personagens, escrevo pra descarregar o turbilhão de informações que produzo sem perceber.

– Perfeito! – O tom de excitação na minha voz deve ter transparecido, finalmente fui contemplada com um pouco de atenção do seu olhar.

– Você gosta de ler? – Agora ele me olha entediado com a cabeça apoiada em uma das mãos.

Depois de um longo suspiro respondo.

– É a coisa que mais gosto nesse mundo. Mas ando sem opções ultimamente.

Ele aponta em todas as direções com uma das sobrancelhas levantadas.

– Você já viu onde está?

– Já li todos eles…

Sua expressão agora é divertida, a mesma cara de cretino cheio de si de todos os outros. Por que eles nunca acreditam? Nunca. Sempre zombam, sempre querem tentar descobrir algo obscuro ou antigo que eu não tivesse conhecido. Se eles fossem um pouco compassivos…

Talvez eu os tivesse poupado.

Talvez não.

Oito e quarenta.

Acabo de saborear a última porção. Já sinto as ondas de pensamento me invadir. As histórias vão ficando cada vez mais nítidas. O sabor do suprimento de imaginação irá durar por muitos dias. Os espasmos de loucura me deixam anestesiada. Paisagens com as quais nunca fui capaz de sonhar, os mais profundos lagos habitados por criaturas fantásticas indescritíveis, monstros e heróis desbravando os mesmos campos.

Há sangue por todo o saguão. O crânio vazio do escritor pende em meu colo. Ele ainda estava pensando na história quando o peguei.

Saboroso.