Contos da virada

Dona Lúcia fechou seu livro, o colocou encostado ao braço da poltrona. Já sabia o final, era o seu livro favorito desde menina. Apagou o abajur, as cortinas estavam abertas e as luzes da cidade lá fora iluminavam o quarto o suficiente para que visse seu marido na cama ao seu lado. Era uma linda vista, um dos melhores quartos, em um dos melhores hospitais da cidade. O silêncio era quebrado apenas pelos sons vindos dos equipamentos médicos.
Levantou-se segurou a mão de seu esposo, o homem que não foi seu primeiro amor, não lhe deu filhos, mas que foi o motivo de inúmeras alegrias.
– Meu amor, está acordado? A festa no céu já vai começar.
– Eu sei querida, já estou indo pra lá. – Sua voz era muito baixa, mas ainda firme. Dona Lúcia entendeu tudo com aquele olhar, seus olhos encheram-se de lágrimas, mas não o desviou, até o ouvir o último “pí”. O som que marcou o início do show. O sinal para o Ano Novo.

*

Ele veio daquele jeito brincalhão e sorridente perguntar se ela tinha alguém pra beijar à meia-noite. Danila arregalou os olhos, surpresa, e balançar a cabeça dizendo que não foi espontâneo.
– Me espera aqui então, que eu já volto.
O viu se afastando, tentou montar as peças em sua cabeça, mas não tinha explicação. Será que ele voltaria mesmo? Será que foi só uma piada? Ele desapareceu entre dezenas de pessoas vestidas branco.
A contagem regressiva começou.
10…
Danila se perguntou onde ele tinha ido?
9…
O que foi fazer? Por que a deixou ali?
8…
As pessoas passavam por ela, sufocando-a, enquanto ela procurava por ele por todos os lados.
7…
É, só podia ter sido uma piada mesmo.
6…
No mínimo ele foi embora da festa.
5…
No máximo ele estava em algum canto com outra garota.
4…
Rindo da cara dela.
3…
Mas aquele moço carregando duas taças de champanhe parecia muito com ele.
2…
E estava sorrindo pra ela.
1…
E estava perto de mais.
Feliz Ano Novo!

*

E um segundo depois dos fogos veio o choro.
Um choro alto, agudo e desesperado, sua vontade foi de ir correndo e tirar aquela pequena criaturinha do perigo. Mãos enluvadas levavam a criaturinha pra longe dele. A criaturinha estava imunda, coberta de sangue. E mesmo assim ele pode ver que ela tinha uma marca nas costas, uma mancha triangular, igual a que ele mesmo carregava desde o nascimento. Amou a criaturinha instantaneamente, sem precisar tocá-la, sem precisar saber qual sua cor favorita, ou mesmo se o amor seria retribuído. Como só havia amado uma pessoa em sua vida, a mulher que estava exausta e sorridente ao seu lado.
Aninha nasceu, no primeiro minuto do Ano Novo.

*

André assistiu aos fogos através do pára-brisas quebrado, sentindo o sangue escorrer ao lado de seu olho esquerdo. Quente e reconfortante. Com certeza sua camisa nova esta arruinada, aquela mancha nunca ia sair completamente. Ia ter que jogar fora.
Pensou no lugar para onde ia, nas pessoas que o estavam esperando, nas providência que deveria ter tomado. Devia ter cuidado de tudo mais cedo.
As luzes eram lindas, mas o poste à sua frente impedia que tivesse uma boa visão do espetáculo. Ouviu ao longe alguém gritando que ia pedir socorro. Mas estava tudo bem, não havia mais dor, só queria poder ver tudo claramente, mas escurecia.
Fechou os olhos para descansar, mas antes cumprimentou seu amigo poste, desejou-lhe um Ano Novo sem preocupações.

*

Duda ligou a TV, os estouros na praia de Copacabana já duravam mais de 10 minutos. Estava sentada, numa pequena poltrona, numa pequena sala, num pequeno apartamento, numa cidade grande e sem praia.
Colocou o saquinho de chá na caneca com água quente. Olhou em volta, ainda havia algumas caixas empilhadas num canto, mas finalmente tinha acabado de organizar seus livros, CDs e álbuns de fotos na estante que era desproporcional ao tamanho da sala. Desproporcional ao tamanho de tudo o mais naquele apartamento. Ou melhor, aquela estante combinava perfeitamente com a sua alegria. Histórias, músicas e pessoas que faziam parte de sua vida.
Foi bebericando o chá enquanto acompanhava as imensas e animadas festas ao redor do mundo.
Não importava se era o último ou o primeiro dia do ano. Só importava que era o início de uma nova etapa.