2073

Se olhava no espelho com um interesse genuíno. Observou seu rosto, tentando lembrar-se de como era antes. Pegou o grampo na penteadeira a sua frente e notou que suas mãos tremiam um pouco. Ajeitou a mecha do cabelo e a prendeu, deixando a franja solta, como sempre quis fazer desde que tinha 13 anos. Naquela época, achava sexy. Difícil pensar assim quando se tem 83 anos.

Enquanto observava as rugas em seu reflexo (poderia enumerar as ocasiões em que elas surgiram) o dia ia nascendo e não demorou para que os primeiros raios de sol brilhassem em seu cabelo prateado.

Sentiu o cheiro do café subir as escadas, chamando-a, e, aos poucos, ouvia a casa acordar. Estavam todos ali, para comemorar o grande dia. Ao entrar na cozinha, encontrou seu companheiro, amigo e amante de muitos anos. Aqueles olhos azuis que por tantas vezes a admiraram e a fizeram ficar admirada (como podiam ser tão azuis?!). Sua gratidão por ele era tão grande que, só de pensar, já inchava dentro do peito, causando aquele desconforto bom que apenas as coisas especiais nos fazem sentir.

Mas ela não o amava, não como nos filmes. Lembrou-se da época em que acreditava no amor. A juventude. Era tudo tão lindo e mágico, não era? A simples ideia de se casar sem estar perdidamente apaixonada lhe parecia absurda. Mas não podia reclamar. Ele era realmente muito bom pra ela e eles foram muito felizes juntos. Construíram uma família e tinham filhos, netos e a primeira bisneta – que chegaria ao mundo em apenas 7 dias.

O dia passou rápido – como a vida – e já era fim de tarde quando o carro parou em frente à casa e a encontrou descansando no balanço. Seus olhos brilharam e seu coração pulou uma batida. Setenta anos. Há setenta anos ela recebia lírios brancos em seu aniversário e, mesmo assim, os esperava sempre com ansiedade, com medo de que um dia eles não fossem mais entregues.

Não sabia quem os mandava – acredite, passara anos tentando descobrir, desconfiando de parentes, pais e amigos – mas os recebia sempre com carinho. Fevereiro cheirava a lírios.

Mas aquela não era uma entrega comum. Nem um entregador comum. Após 10 (ou seriam 30?) segundos de surpresa, lembrou-se que tinha que respirar e parou de prender a respiração. Era ele. Ela sempre soube, mas nunca acreditou. Ele estava, finalmente, vindo lhe entregar as flores. Ainda usava o mesmo perfume e o mesmo sorriso. Vestia uma calça de tweed e tinha os cabelos brancos bagunçados, como se idade alguma o fizesse usar um pente.

Ele lhe entregou as flores e desejou-lhe Feliz Aniversário. Olharam-se em silêncio sabendo, pelo histórico que tinham, que qualquer palavra quebraria a beleza frágil daquele momento.

Ele estava virando as costas para ir embora quando ela chamou seu nome. Não sabia o que dizer, apenas queria a companhia por mais alguns segundos. Limitou-se a sorrir. Algumas coisas não precisam ser ditas para ser compreendidas.

Naquela noite, chorou, um pouco de tristeza, um pouco de felicidade. Dormiu envolta no perfume das flores e não acordou mais.